São negras as ruas em que me arrasto, donde sublima
do calçamento o odor acre dos pensamentos pútridos e infames que os passantes
deixam pelo chão e que eu cato entre pedras em busca de alimento. Carruagens
passam apressadas pela rua, respingando em meus velhos trapos o resto da chuva
noturna. Eu me recolho e me encolho semi coberto por pedaços mal rasgados de
lona dos circos passados. As cadelas magras e enfermas lambem minhas chagas e
eu as enxoto, eu as odeio por isso.Cada qual com sua doença.
De cara
apoiada nas pedras posso sentir quase que liquidamente o cheiro do estrume que
os cavalos espalham pelo caminho, como se fosse um presente da natureza confeccionado
só pra mim. Eu, que vivo a altura de tudo que cai, de tudo que é jogado e lá
permanece, eu vivo embaixo, vivo no chão, onde tudo é esquecido ou deixado. O
que me resta é o que a todos sobram.
É esse odor
nauseabundo que recende de minhas vestes e esse meu corpo enfermiço,
repetidamente conspurcado pela imundície das vias, que me faz repulsivo aos
olhos de toda gente. Eu sou a verruga escura na face da amante, sou o cheiro
ruim entre as pernas, o líquido viscoso e pálido de feridas abertas, eu sou o
pelo crespo insistentemente colado na língua molhada, sou sangue podre correndo
em veias viris e ainda vitais. Orgulho não permite pedidos, e é com o orgulho
que forjo a maldita auréola que adorna e fere minha fronte, como uma coroa de
pregos, para que sangre em gotas escuras todo o sangue bastardo do deus.
Eu nunca peço, mendigo. Imploro com olhos doces e
boca cerrada cada lasca de afeto que caia das fartas mesas. Eu estendo mãos e
atenções como redes de porvir, esperando delas retirar pequenas e fugazes
alegrias. Com minhas magras mãos, eu semeio em pedra, as flores que enfrentariam
minha tão impossível janela.
Não há luz.
O antigo sol brilha no céu, mas não pra gente como eu. Na gênese, nada foi por
mim. Eu sou aquele que o deus não criou, sou o que não se afogou no dilúvio e
que após a enchente aprendeu a viver na lama.
Eu, quando
amo, até mesmo ele é um amor usurpado, um quase furto aos deuses e burgueses
que em amor e prazeres se refestelam, de alguma forma, é como se o sentimento
fosse uma seda fina e extremamente alva e fosse por isso, um pecado grande
demais sujá-la em minhas mãos. Assim sendo, quando o vento e o frio do
desprezo cortam meu corpo, é debaixo de grossas e sebosas peles que me
protejo, é no resto do que viveu que me aqueço, pois se houvesse um amor pra
ser vivido, ele por certo morreria esmagado em minhas mãos afoitas.
Eu
repousaria seu pequeno corpo sobre o azulejo encardido de alguma sepultura e numa prece silenciosa deixaria sobre ele uma flor plástica, quase
sem cor, retirada de uma cova qualquer. E choraria. Eu choraria como ainda faço
quando me dói, choraria por mim e por nós, choraria pela criança que não fui,
choraria pelo velho raquítico que serei, choraria o choro de todas as almas
daquele antigo cemitério. Daí talvez, sendo eu tão esquecido quanto os mortos,
fosse convidado a ter com eles, onde cearíamos graves e solenes sobre os
túmulos, brindando de taça vazia toda a pureza e alegria do mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário