quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Mendicância

São negras as ruas em que me arrasto, donde sublima do calçamento o odor acre dos pensamentos pútridos e infames que os passantes deixam pelo chão e que eu cato entre pedras em busca de alimento. Carruagens passam apressadas pela rua, respingando em meus velhos trapos o resto da chuva noturna. Eu me recolho e me encolho semi coberto por pedaços mal rasgados de lona dos circos passados. As cadelas magras e enfermas lambem minhas chagas e eu as enxoto, eu as odeio por isso.Cada qual com sua doença.
 De cara apoiada nas pedras posso sentir quase que liquidamente o cheiro do estrume que os cavalos espalham pelo caminho, como se fosse um presente da natureza confeccionado só pra mim. Eu, que vivo a altura de tudo que cai, de tudo que é jogado e lá permanece, eu vivo embaixo, vivo no chão, onde tudo é esquecido ou deixado. O que me resta é o que a todos sobram.
 É esse odor nauseabundo que recende de minhas vestes e esse meu corpo enfermiço, repetidamente conspurcado pela imundície das vias, que me faz repulsivo aos olhos de toda gente. Eu sou a verruga escura na face da amante, sou o cheiro ruim entre as pernas, o líquido viscoso e pálido de feridas abertas, eu sou o pelo crespo insistentemente colado na língua molhada, sou sangue podre correndo em veias viris e ainda vitais. Orgulho não permite pedidos, e é com o orgulho que forjo a maldita auréola que adorna e fere minha fronte, como uma coroa de pregos, para que sangre em gotas escuras todo o sangue bastardo do deus.
Eu nunca peço, mendigo. Imploro com olhos doces e boca cerrada cada lasca de afeto que caia das fartas mesas. Eu estendo mãos e atenções como redes de porvir, esperando delas retirar pequenas e fugazes alegrias. Com minhas magras mãos, eu semeio em pedra, as flores que enfrentariam minha tão impossível janela.
 Não há luz. O antigo sol brilha no céu, mas não pra gente como eu. Na gênese, nada foi por mim. Eu sou aquele que o deus não criou, sou o que não se afogou no dilúvio e que após a enchente aprendeu a viver na lama.
 Eu, quando amo, até mesmo ele é um amor usurpado, um quase furto aos deuses e burgueses que em amor e prazeres se refestelam, de alguma forma, é como se o sentimento fosse uma seda fina e extremamente alva e fosse por isso, um pecado grande demais sujá-la em minhas mãos. Assim sendo, quando o vento e o frio do desprezo cortam meu corpo, é debaixo de grossas e sebosas peles que me protejo, é no resto do que viveu que me aqueço, pois se houvesse um amor pra ser vivido, ele por certo morreria esmagado em minhas mãos afoitas.
 Eu repousaria seu pequeno corpo sobre o azulejo encardido de alguma sepultura e numa prece silenciosa deixaria sobre ele uma flor plástica, quase sem cor, retirada de uma cova qualquer. E choraria. Eu choraria como ainda faço quando me dói, choraria por mim e por nós, choraria pela criança que não fui, choraria pelo velho raquítico que serei, choraria o choro de todas as almas daquele antigo cemitério. Daí talvez, sendo eu tão esquecido quanto os mortos, fosse convidado a ter com eles, onde cearíamos graves e solenes sobre os túmulos, brindando de taça vazia toda a pureza e alegria do mundo.

mEUsol

Pois aconteceu de então, de numa madrugada escura, o Sol ir embora.
No primeiro dia eu estranhei a falta. A ausência do astro alterara minha própria órbita. Seu calor tornava-se cada vez mais ameno e meu corpo se arrefecia refém da distância.
No segundo dia eu estive feliz e sorri por ele. Agora ele estava mais do que nunca no céu e brilhava solitário e austero sobre todos.
O terceiro dia se iniciou lânguido e displicente tendo água e sombras como cúmplices. Olhei pra cima e nada vi, meu Sol agora reluzia distante, aquecendo a grande selva de pedra,pairando sobre cabeças vorazes que gritavam clamando por chuva.
O quarto dia foi ainda mais frio e o cinza mórbido que pintava a cidade dava à ela uma nota de fúnebre melancolia. Eu, tal como as nuvens lentas quase estáticas no céu, diminui o ritmo até adormecer. Dormi, dormi... e quando de olhos abertos ainda dormia. Cansaço, tristeza, frio, saudade... menos fome. Mas tal como a terra anseia o calor, o Astro Rei não se compraz em queimar sozinho.
No quinto dia eu amanheci com a chuva, que revoltada, afrontava o vidro da janela sobre minha cabeça. O mundo era caos, porém mesmo assim eu resolvi sair. O Sol imperara até então, porém ele não faz parte desse mundo. Portanto e para tanto: Vivi, refiz, criei e inventei! Modifiquei as formas e modos do mundo que me restou. Eu nada tenho além do hoje.
No sexto dia, como se ele também sentisse falta do sol e o gelo da indiferença também o ferisse, o céu sangrou. Sangrou minhas pequenas e agudas mágoas, sangrou minha insegurança tão sofrida... Ele sangrou vermelho, pois mesmo que doa, é amor. Tal dissonância de tons no céu, esse vermelho aquecendo liquidamente o mármore cinza, trouxe-me displicentes lembranças, tão quentes e distantes quanto meu Sol.
O sétimo dia me pareceu menos frio. A rubra nuvem de outrora se dissolvera entre as outras, dando um tom róseo à cúpula celeste. Como se fosse eu a terra, senti amanhecer em meu peito o calor. Tudo se iluminava, as formas se revelavam, o que era úmido secava sublimando todo choro frio da grande noite. O mundo me sorriu feliz. Me sorriu como um pai que se orgulha do filho que levanta enxugando as lágrimas após a queda.

No fim da grande noite eu decidi enfim descansar. O corpo lacerado se recompunha no calor tão desejado e o coração batia alegre no velho peito. Nada começa ou finda. Marés, astros, vidas... são ciclos. Exceto o tempo. E eis que Ele, tão perene quanto fugidio, fez da grande noite uma regênesi de mim. Há sete dias, eu amanhecia como um homem no escuro, porém hoje, eu me ponho como o sol do meu próprio horizonte.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Bianco

Olhos de jade milenar
Verde antigo, puído e por vezes lavado
Coração cristal.
Vivo, eterno, solar

Tanto maior é a luz
Mais escura é a sombra que ela oferta
Seu sangue, vinho
Cada lágrima, um mar

Traz a vitória no nome
E o amor na pele
Fronte audaz e fatal de felino solitário
O homem cinza por trás da fumaça

Tão sombrio quanto angélico
Tanto candura quanto lascívia
Pintura barroca, cores sóbrias
No seu corpo, trevas e há luz

Chora como quem se implora
E sorri o brilho dos que acreditam
Traz na alma tristezas perenes
E as saudades repetidamente vividas

Numa mão, o sangue rubro de amores findos
Com a outra, ergue um ramo de lírios
Para cada amor, uma dor
Para cada dor, uma flor



Nero