sábado, 24 de agosto de 2013

Venoso



A mão escreve trêmula
O peito infla soltando ruidosamente o ar
A boca rígida aperta e range os dentes
O olhar duro racharia o ar se ele fosse sólido

Você é esse gosto ruim
É aquela gosma no fundo da garganta depois do azedo
Eu te cuspo
Te escarro

Você é quem preenche o vazio do meu peito
É sua a agonia que sopra minhas narinas
Você é a dor do ódio
É a mágoa que me mancha de negro

Onde acaba o amor
E começa a destruição?
O que difere esse viver
Da morte ininterrupta?

Eu quero que vá!
Quero mesmo que a terra se abra em dentes
E que, escancarada, te devore pra sempre
Não me pesaria ver seu sorriso sangrar para as pedras

Oh, então saia!
Nada de cigarros pra mim
Meu veneno eu mesmo produzo
Te morderia se isso o matasse

A morte te faria eterno
Tal vulgaridade de ser precisa ser extirpada
Que não se propague pelo mundo
Esse pecado atroz

Eu odeio o cinza
A cor me enoja
Seja negro, seja alvo
Mas tire da minha vista esse seu cinza!

Não se mostra por medo
Se vende caro ao que é banal
Saia detrás desse seu azul roubado
Assuma sua imundície de alma

Cuspa na minha cara
Grite algo no escuro
Mas não molhe de lágrimas sua face
Não me consola seu choro

Porque chora, criança?
Prefiro que sangre esses seus olhos
Talvez assim enxergue a cor em mim
E veja o mundo como eu

Me deitei numa cama de negros escorpiões
Me satisfiz e esperei deles amor
Mas como esperar que floresça
No deserto alguma rosa

Você está seco!
Sua muralha se desfaz com o vento
Pois até os maiores castelos
Tornam-se ruínas com o tempo

Toda fortaleza se ergue sobre solo arenoso
Terra encharcada por lágrimas alheias
Toda mágoa sofrida
Cada pequena gota é por você

Cairá do céu escuro
Mágoas líquidas
A enxurrada será impiedosa
E de você não restará lembranças

Não haverá quem chore
No céu o azul legítimo sustentará sobre nós a luz do sol
Fazendo lembrar que não há noite ou dilúvio
Que assole a força de um coração que ama.














domingo, 18 de agosto de 2013

Cinza

O sol há muito havia se posto e o oceano era agora uma catedral de silente solidão. Me arrastei até a beira do precipício submerso onde meus olhos nada viam além de uma densa mancha negra e me joguei.
Meu corpo desceu solenemente e pude sentir o frio e a pressão que me lembravam o quão fundo eu estava. De poucos metros de onde caíra sua concha, pude perceber que a rachadura que nela havia, era agora um buraco de onde parte de seu braço escapava.
Me aproximei lentamente, meu coração batia descompassado. Enfim podia vê-lo, faltava agora pouco para tê-lo livre. Nesse pensamento toquei o que restava da concha e exerci sobre sua superfície considerável força. Um ruído mínimo e toda estrutura desabou fazendo subir areia e algas mortas que se depositavam no fundo do mar.
Quando baixou a sujeira e a água ficou menos turva, pude ver seu corpo que repousava solene como uma pérola. Foi fácil sorrir de novo. Meus dedos novamente seguiram as linhas que davam forma aos símbolos milenares traçados em sua pele. Toquei sua face limpando o que restava de sujeira e me assustei quando notei que por onde meus dedos passaram sua pele mudava de cor.
Seus olhos se abriram e me fitaram mórbidos e sem expressão. Não sei bem a razão, mas esfreguei com força sua face, seu peito... por baixo da pintura tão bem feita, descobri pasmo que uma pele escamosa e cinza cobria seu corpo. Me afastei e com calma lentidão, sentei-me encolhido num canto ainda mais escuro da cratera. Percebi sua aproximação e senti que me olhava. Quando abri os olhos, em minha frente havia agora uma salamandra cinza, ela não possuía dentes e seus olhos eram cobertos pela mesma pele fina que dava ao anfíbio um ar cadavérico.
Entendi que nunca havia saído do fundo do mar, ignorando a existência de ar, sol ou terra, coisas que a mim remetiam a alegria e saudade...por certo nunca verá a beleza de uma borboleta e o sol pra ele nunca passará de uma mancha mais clara na escuridade de sua visão, pois na profundidade em que se encontrava, as imagens eram comodamente ignoradas por seus olhos que agora não passavam de esferas negras, cujo brilho dava a falsa ideia de vida.
Aceitar que tal criatura era o mesmo ser que até então considerei divino, me custou muito, por orgulho ou talvez piedade. A transparência da pele me permitiu ver que seu minúsculo coração estava ferido e batia com dificuldade. Me levantei caminhando até onde jazia a parte inferior de sua concha, onde um ouriço de cor negra se movia dificultosamente sobre a superfície lisa. Entendi que mesmo com o coração ferido, ele não aprendera a se afastar do que lhe machuca.
 Foi no Templo sagrado da despedida que o abandonei, entregue aos flashes luminosos de alegrias passadas ,onde ele permanecerá revivendo o que se passou, aguardando alguém que está há séculos de distância e esquecimento.

Enquanto olhava taciturno a paisagem, ouvi uma voz; a mesma de sempre, porém dessa vez a reconheci. Era minha própria voz que afirmava repetidamente: passou, passou, passou...
Como um feitiço que se quebra, a pressão e o frio aliviaram imediatamente e a água escura de outrora se mostrava densa névoa. Diante dessa imagem, aceitei que eu mesmo havia criado tal fantasia.O mar, o recanto, sua imagem...tudo se desfazia ao meu redor.
Me ajoelhei agarrando com força a terra sentindo o calor do sol da manhã que surgia no horizonte azulado. O vento soprou forte dissipando toda a névoa e a escuridão que ela trazia. Ergui a mão acima da cabeça e então a abri para que o vento soprasse toda a terra que nela havia. Confiei novamente no vento, assim como fazia quando criança e segui a mesma direção da poeira, na certeza de que ele me soprava o caminho de volta.

Mas passou


Acreditei sentir o sabor
Da realidade que bebia
Mas o movimento da taça
Trouxe à boca o amargo do rancor

Cuspi no chão as palavras de amor
E a elas disse adeus
Sem dor e de olhos tão secos
Quanto sua despedida

Enxugue dos olhos o remorso
Nenhum de nós deve o possuir
Não me molhe de fraqueza
Só assim não te sujo de mágoa

Tomo pra vida o amor que te dei
Dou-me a mão a ti estendida
Pois quando o vento sopra forte
A mudança varre as folhas secas

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Escuro

Durante noites sem fim e dias cada vez mais escuros, eu velei seu recanto. Meu olhar e sentidos eram incansáveis e atenciosos. Fiz de sua proteção meu oficio, como se fosse eu o portador da tal felicidade.
Eu quis vender o que me restava de vida pela oportunidade de curar suas feridas. Pudera eu voltar no tempo e retirar cada pedra pontiaguda da estrada antes que tropeçasse e apagar toda memória sangrenta de quem um dia o magoou. Mas não é possível. O que pude foi tentar fazer com que o presente seja digno de memórias felizes e perenes no seu coração. Tentei de todo o coração ser o motivo do seu melhor sorriso do dia, a mão que te acaricia os cabelos até que o sono chegue e a cada virada de noite eu desejei, antes mesmo que adormecesse, que o dia vindouro fosse mais feliz.
Um pequeno estalo. Mais um estalo e esse foi seguido de um grande estrondo. Meus olhos rapidamente se tornaram alertas e descobriram a causa do ruído. Atônito eu fitava em agonia seu recanto. Sua concha havia se deslocado e balançava ameaçadoramente a beira do precipício. O medo tomou um novo sentido e eu encarei sua face com tamanha proximidade que sua respiração arrepiou minha pele.
Cada partícula temporal era um século em minha mente que calculava cada possibilidade descartando-a logo em seguida. Foi com sofrida convicção que mensurei minha displicente ingenuidade. Por certo me distrai ou me fiz cego, mas de alguma forma não percebi a verdade que gritava a minha frente...fora você próprio a mover a concha, era sua a vontade de cair!
Dor. Nunca havia parado pra pensar no significado de tal palavra, mas nesse momento eu o conheci intimamente. O coração quase curado de outras aventuras batia sôfrego e os olhos secos de outrora transbordavam um pranto sofrido e desesperado que dava à água salgada uma nota de dolorosa tristeza.
A visão distorcida me ofertou uma ultima imagem onde te vejo com a face plácida, que lhe é típica, sumir na escuridão. O silencio foi absoluto e o mar por um instante se calou em respeito ao meu luto. As bolhas que subiram me trouxeram a lembrança feliz de nossas brincadeiras com espuma, mas eu não sorri.
  
Não sei quanto tempo se passou até que eu pudesse me mover e quando finalmente consegui não sabia pra onde ir. Eu havia perdido você, os planos traçados, bem como a vontade de que exista o que eu chamei até então de futuro. Ao mesmo tempo eu pensava o que seria de você, recalculava possíveis erros... tudo em vão. Eu bebia agora um copo largo e cheio de amarga realidade.
Percebi, quase em susto, um calor ameno em meu peito. A chama. O silencio quase eterno foi rompido em minha mente e a voz doce e muito familiar do oceano me lembrou da frase tantas vezes por mim repetida “Poucos são os que têm a coragem de se arriscar em banhos noturnos”. Um sorriso melancólico amanheceu em meu rosto num reconhecimento a missão confiada e por mim aceita.
Me debrucei sobre uma grande rocha e a rasguei com os próprios dedos, escrevendo nela nossa história. O sangue se erguia nas águas como vis serpentes misturando-se a liquidez de minhas lágrimas. Olhei uma ultima vez para o céu e pude ver a sombra de uma pequena borboleta que pousou delicada sobre a água. O sol poente invadia teimosamente a barreira do horizonte, desenrolando sobre os corais do solo marinho, um tapete de um dourado quase solene.
Quando por fim emergir das profundezas, provavelmente não reconhecerá meu sacrifício e talvez eu não esteja vivo para ver seu sorriso carinhoso, quero apenas que a lembrança dos momentos vividos te guie minha criança à nossa terra prometida, para que as pedras seculares trilhem o caminho dourado que leva a colina, onde você poderá ver a paisagem e sorrir para o mundo novamente já livre de dores e lavado do sangue carmim de outros amores. Desejo ainda que esteja atento quando o vento tocar seus cabelos assim como eu fazia e que se lembre do que eu dizia sobre a mudança.