terça-feira, 23 de abril de 2013

Angelus Sole

 "O Sol, meu pai, poupa-me a pele e os olhos,
                        Me chama de filho, ilumina o meu caminho e me guia
               Pela estrada do mundo pelas quais passo e vivo."
                                                                                                             Poeta, Heliandro Rosa

 
A música, que o dia escolheu para reger os seres que a ouvem, ecoa em meu corpo que a reproduz em notas destoantes e similares. A luz do sol faz brilhar as pérolas nos olhares esperançosos e felizes que aguardam com euforia o desfecho do maior concerto de todos os dias, que sempre acontece e nunca para, no qual a vida canta em voz alta e grave para que possamos, todos de longe, ouvir e acompanhar a melodia... cada um com seu coração batente.

O dia vindouro traz sobre a fronte um véu de mistério que não nos permite ver sua face, é sempre preciso cerrar os olhos e abrir a alma para sentir o que virá.

As asas milenares, antigas e enferrujadas, agora adornadas com galhos secos e rosas cobreadas, estão abertas ao sol da manhã. O peito inflado solta um grito de satisfação plena e esperança renovada fazendo lembrar que o brilho do sol só reflete em olhos abertos para ele.
Pergunto-me aonde me levarão tais asas que guardei, enquanto buscava com os meus próprios passos o abrigo perfeito para a tormenta. Eu que sempre preferi o solo e que a ele me ofertei como filho, me vendendo a tudo que é fácil e vulgar.

 Abandonado às terras crestadas de minha realidade, despido de toda a segurança e conforto que os pés no chão denotavam, não pude mais ignorar a origem celeste do corpo, nem o calor que queima em meu peito.
 O que restou foi o que sempre trouxe nos olhos: um legado de pura e real liberdade. Tudo que preciso possui a envergadura de um sonho e a pungência desse meu querer, que não se prende a nada, que é indefinido e matricial.

Tal como a onda invade a terra, meu peito tem sido lavado a cada lufada de vento que toca a baía do meu coração, destruindo toda a vila de desejos e amores que fragilmente construí a beira mar. O novo sempre arrasta o que tenho, fazendo-se dono do que não soube cuidar.
Olhando para o céu que cintila sobre minha cabeça, vejo ao longe a silhueta do meu mundo que me fita de longe com olhar caridoso e cheio de ternura.

Que o sol, que hoje brilha no céu, seja como o pai que nunca tive aquecendo meu peito e desfazendo as amarguras que se agarram em minha alma, me prendendo ao que é pouco e ruim. E que minhas asas, herança de um tempo sem dor nem remorsos, possam ser fortes o suficiente para me elevarem até ele.

Que no colo desse pai seja eu acolhido e compreendido como o filho que partiu sem vontade e se demorou pela pouca fé. Que ele ouça minha história com atenção e carinho, que seu julgo se faça leve e que seu amor me perdoe.

Que seja lá o meu lar, onde a chuva diária lave de minha alma as imperfeições que carrego, fazendo de mim limpo e digno de viver e que eu sinta que de fato pertenço a esse mundo que é todo beleza e luz.
Que o novo possa se tornar constância a fim de que o desprendimento me ensine amar como quem vivera sempre ou morrerá eternamente.

De asas arqueadas e coração carregado de esperanças e saudades, bato no chão os pés que até hoje só me levaram a lugares de onde quis partir e me ergo do solo sublimando toda uma vida de tristeza e insatisfação, da qual levo o pouco que vi e o que aprendi na certeza de que o mundo nunca me daria amor suficiente para preencher esse meu coração que é bem maior que todo ele.

                                                                                                   

domingo, 7 de abril de 2013

Esperança

Morreu a esperança. Tudo é ilusão.
O sangue que escorre de minhas mãos, é da pomba branca, portadora do maldito ramo de oliveira.
Sim pois ela é animal, e como tudo nessa planeta animalizado, ela morre!
Criança ingênua de coração aberto, eu alimentava com as mãos aquele pequeno animal que hoje jaz sobre o solo úmido de sangue.
Esperança é bicho, é arisca e difícil de apanhar. Ela voa!
 A pomba branca de outrora se fez besta monstruosa, ave negra de pele escamosa que voa pelo céu chuvoso rachado de raios  tremeluzentes, trazendo no bico um ramo de espinheiro com a nota de que tudo morrerá, que nada vale a pena, pois tudo já está morto.
É tolo aquele que pensar que por a possuir poderá também voar, pois ela não pertence a ninguém, muito menos a esse mundo, é nativa de terras distantes de onde a baniram.
A esperança não tem cria muito menos sentimento maternal, come na sua mão e quando satisfeita bate as asas arranhando com as patas a mão caridosa. Ela te fere e deixa dor como forma de gratidão.
Não há quem possa, e muito poucos que queiram aniquilar tal fera. Mas não há ser vivente do qual ela não tenha se alimentado. Ela que é força solitária, a sombra negra que vem de longe, as asas escuras que levam seus sonhos.
Maldito seja o dia em que eclodiu a alva Caixa de Pandora, de onde saiu a esperança mascarando sua vilania sob a inocência travestida do branco celeste e malditos são todos os que fizeram dela projeção de futuro ou de amor vindouro, pois dela não emana nada que não seja doloroso, escuro e ruim.

Negro como Rubi

Que seja eu a rainha desse palácio de lençóis, a viúva que nunca se casara, a meretriz que  deita-se com as sombras, aquela que plantou a árvore do fruto proibido, a morte sob vestes carmesins, a nuvem que chove o negro sobre o mundo.
 Que minhas ordens não sejam cumpridas com resignação ou presteza. Aprenda o que desejo mesmo que minhas palavras o contradigam. Este palácio nunca precisou de um rei, o que eu quero de você e a revolta do escravo rebelde, a ironia do súdito traidor e a crueldade fria do carrasco.
Se deite em silencio ao meu lado. Nenhuma palavra. Não quero saber qual o tom da sua voz, de sua boca não quero nem gemidos de prazer, pois esses devem ser os meus.
Não me beije na boca, eu tenho um corpo inteiro que arde. Não me afague, quando me tocar quero que meu corpo sinta toda a força que possui esses seus braços. Quero sentir o peso de seu corpo sobre o meu, e que entre eles só exista uma fina película de suor ardente. Quero pernas que me prendam, quero mãos em torno do pescoço e dentes na orelha.
Nunca me atraíram as águas paradas dos lagos, quero que entre em mim com a fúria com que o mar em ressaca invade uma gruta na praia.
Venha rápido, forte, profundo.
Tire seu olhar do meu, não venha se confessar pelo sacrilégio de sua fraqueza de alma, em mim não encontrara rendição, mas provavelmente, o castigo.
Me enoja o respeito. Não sou a senhora sua mãe, nem nunca fui donzela. Trate-me de acordo com minha condição de mulher aberta sobre lençóis úmidos de prazer, a cadela moribunda que vagueia pelo mundo num cio perpétuo, a ninfa escura dos pântanos fétidos, o lado negro da lua dos amantes.
Não me agrade como se faz com as mulheres de família, nunca fui uma delas. Sou solta no mundo, força liberta e devastadora. Você por certo não sobreviverá a mim, portanto não tente se fazer especial, isso só me traria desagrado e você com certeza não gostaria disso. Mascare essa sua mediocridade sob movimentos maquinais de selvageria impensada, e espere que em nenhum momento eu perceba em você  algum sinal desse seu íntimo infame e banal.
Não quero de forma alguma que me contamine, suje a si mesmo. Vá longe se lavar, leve com você tudo que e ameno, fraco e pequeno. Leve toda essa sua insossa satisfação pra longe dos meus olhos.
Quero que saia tal como entrou, em silêncio. E não olhe para traz, pra você eu serei a tormenta de raios que iluminou o céu de sua noite calma, pois à você foi destinados nada mais que manhãs de sol, nuvens claras e afagos amenos.

Asa Negra

Tanto tempo se passou, tanto já se viveu, o quanto já morreu.  E teimosamente repousando sobre um  galho seco, você ainda está.
Não te acuso de invasão, pois se fez ninho aqui, foi porque o chamei.
Você que traz a chuva fria que molha meu peito, que inunda minha alma, que encharca meu leito.

Eu sei que agora sou bem maior que você. Pois você é tão pequena que não se enxerga. Porém maior que ambos sempre foi esse monstro de face dura e boca escancarada, essa figura grotesca de uma paixão não alimentada.

Me encontro agora, acorrentado à frondosa e ressequida árvore negra das lembranças de minha dor. Onde frutos fétidos e tão negros quando as memórias, caem sobre minha cabeça, se despedaçando, fazendo-me imundo e miserável.

Dia após dia esse monstro me devorou o coração, vomitando-o em meu peito a cada crepúsculo sangrento. Quando por fim se saciou, me deixou ali prezo, a mercê dos ventos que me chicoteavam a pele.

A desgraçada ferida se fechou como caixão escuro, onde jaz um coração mutilado e contaminado pela saliva da fera maldita. Desde de então, é em meu peito que queima sua ira, sua fome. É na carne podre do meu corpo que a fera se apresenta, é de minha garganta que provém seu grito e é com minhas mãos que ela fere.

Por vezes a prendo, mas é em vão que tento esquecê-la pois o rugir que ecoa no meu peito, cala todas canções, ensurdece os amores, emudece os corações.

É sua ave negra, a asa que cujas penas roçam meu dorso, cujo revoar sopra em meu rosto a brisa gélida e fétida que me faz vomitar. Onde cuspo tudo o que é bom, fetos disformes do que sobreviveu e que não suporta mais estar em mim.

Voa ave de agouro, voa pra longe, corta com asas de navalha as nuvens escuras no horizonte, leva consigo a chuva maldita, se molha das lágrimas que caem do meu rosto.

Pois por mais perpétua que tenha sido a noite, a alvorada acende solene, aquecendo e iluminando, enchendo de vida a terra, fazendo florir os troncos secos, trazendo o calor de um amor no peito, a força de uma presença carinhosa e a certeza de que o dia irá durar.

Nos Bailes de Quarta


Como fazia todas as quartas-feiras desde que ela se foi, declaradamente velho e sem ter mais diversões disponíveis ou compatíveis com meus 72 anos, eu visitava aquele baile destinado a pessoas que, como eu, tentavam se distrair para que o tempo de nossa espera pela morte não nos seja demasiadamente árduo.
Pessoas velhas costumam falar muito, principalmente da vida dos outros, talvez pelo fato de suas vidas terem se tornado como uma fotografia antiga e amarelada pelo tempo, dependurada na parede de suas memórias, de onde apenas vislumbram uma felicidade passada cujos ápices há muito se foram. Como acontecera muitas outras vezes, o assunto geral era um casal que sempre aparecia por lá às quartas e que agora se balançava a beira do salão.
Ela que tinha 45 anos quando ele nasceu, hoje trajava um vestido muito simples, quase da cor de sua pele, ornado com um belo broche que combinava discretamente com o colar e os brincos que dependurados em suas orelhas as esticavam ainda mais que o tempo, trazendo em sua cabeça um prendedor com três pérolas e uma pena negra. O homem era alto, forte e se destacava pelos seus 35 anos bem vividos, seus traços fortes e pele escura.
Como de costume ela chegou de braços dados com ele, que com um olhar procurava uma mesa. Quando então conseguiu, deixou sua bolsa e o motorista que os acompanhava e seguiram direto para o salão onde agora pairava sobre as mesas um bolero tão antigo quanto o passado das pessoas ali presentes.
Desde que comecei a frequentar os bailes de quarta eu os via, e a presença deles sempre salpicava com murmúrios as mesas que circundavam a pista de dança. Os comentários, vindos das velhas e desocupadas senhoras com quem eu partilho essas noites, apesar de variados eram sempre os mesmos, de que ela tinha muita sorte, de que ele era um coitado, de que aquilo por certo estava custando muito caro para ela, de que ele era um aproveitador, de que ela era uma velha assanhada, de que ele logo a deixaria, de que ela logo seria deixada.
Passei cerca de um mês impedido de visitar os tais bailes devido a um daqueles resfriados que se aproveitam de nossos peitos gastos e cansados. Cheguei, pedi meu uísque costumeiro e me pus a observar os dançarinos rodopiantes à minha frente, casais repartidos, maridos e esposas que dormiam só, se emprestavam na tentativas de substituírem mutuamente a falta de seus entes que se foram. Não pude deixar de pensar em como eu me conformei com a solidão, como se não tivesse mais motivos para viver esse restante de vida, pois de alguma forma eu não tinha a mesma esperança deles, eu sabia que uma falta como a dela não poderia, nem parcialmente muito menos temporariamente, ser preenchida.
Perdi-me em meio à romanticidade dos boleros que iniciavam a noite, pois eles me traziam lembranças que nunca tive, momentos que eu abdiquei por egoísmo e desinteresse, e que agora me faziam falta, causando um buraco no peito onde deveriam doer minhas saudades e memórias, e que como a grande boca de uma fera devorava todos os sentimentos e esperanças excretando-os em lugares do meu coração onde já não tenho acesso.
 Só quando começaram as valsas que dei pela falta daquele casal, o preferido para comentários das velhas peruas. Ante minha pergunta, minhas colegas relataram que há algumas semanas não os viam, sem perderem a oportunidade de lançar-me um comentário ácido sobre o rapaz ter arrumado outra senhora para banca-lo.
Como que adivinhando minhas especulações e curiosidade, a porta se abriu deixando que por ela passasse o ar de nova madrugada, e aquele casal, que como num cortejo entrava lenta e dificultosamente no salão.  Ela, com os olhos quase serrados como tules brancos, jazia sobre uma cadeira de rodas, seguida pelo mesmo homem, bem mais magro e que agora trazia um semblante cansado e duas covas escuras sob os olhos.
Acabava de começar uma valsa e alguém ao microfone anunciou como sendo a última, tal me pareceu de início muito familiar e com algum esforço me recordei que foi ela que embalou o baile dos 15 anos de minha amada, a noite em que eu a conheci e que brindamos o fantástico encontro com o beijo ao final da mesma. Foi com os olhos chorosos que senti enfim a saudade, a falta, onde cada mínima lembrança me doeu o peito. Tudo que eu não fiz, tudo que eu não fui, tanto que faltei, o quanto a deixei e ah...como eu a amei. Ela que foi a única flor que brotou nesse terreno seco de minha memória, o lírio de minha felicidade, a flor que eu fiz murchar.
A melodia daquela valsa encheu o salão e a todos aqueles nossos ouvidos cansados com um amor bonito, um sentimento de esperança e saudosismo, e foi esse momento que o casal escolheu para entrar na pista de dança.  Ele a ergueu com cautela e carinho até a altura de seu peito, onde repousou sua cabeça cansada. Os cabelos dela, agora tingidos, traziam o mesmo prendedor de pérolas, dando àquela dama um requinte à sua altivez ferida.
Eles carinhosamente abraçados foram para o centro da pista de dança, sob o globo de luz que como num céu invertido, salpicava de estrelas o chão. De lá partiram rodando, desmanchando as nuvens daquela fumaça adocicada, num romance celeste que ninguém ousaria julgar. Amor tão grande que acendeu a velha lanterna que há tempos estava sem combustível, mas que agora queimava em meu peito, trazendo uma certeza que a vida continua, de que eu estava vivo para vivê-la.
Quando a fumaça foi baixando e as pessoas ao poucos esvaziando o salão, pude perceber uma silhueta que jazia no centro da pista. Como numa pietà invertida, o homem segurava nos braços a mulher a quem amou por tão pouco tempo, e que talvez por isso tão intensamente. Ela agora chegara ao seu fim deixando-o tão novo, porém tão cansado e ferido como os velhos, destinando-o a aprender a substituir no coração o amor que tem, pelas lembranças do que se teve.

Amie

Como fazia todas as noites, ela escutava seus discos favoritos sozinha no escuro,
mas com uma diferença, hoje ela bebia.
Uma comemoração era o motivo.
“Felicidades, querida...” era o que a música lhe desejava.
Seria uma conveniente saudação de aniversário se ela estivesse interessada em felicidade, porém nessa noite em especial ela só queria morte.

Sentada em sua poltrona cinza, ela balança a taça com o líquido escuro que bebia, olhando fixamente para o retrato na parede, permitiu então que sua memória a levasse de novo àquele tempo . . . ela já esteve ali antes, sentada, bebendo. Estava com sono, e a bebida era branca. Sua mãe a preparara.
Uma mãe, tantos erros... quanta ausência.

Ela se lamentava agora ter tido que nascer de humanos...
Pudera ela ter nascido da Natureza, e dessas forças instintivas e imparciais que a formam...do ventre da água, A filha do Vento...

Dos baús velhos das lembranças que ela abandonou
para que não lhe pesassem no caminho,
só uma lhe causou pesar o esquecimento.
Quando ainda pequena, brincando então de ser assim como a vida, ela criava,
desenhando no verso das folhas de um calendário de anos passados.
Como se não houvesse então crítica que se aplicasse ao seu desenho,
já que a natureza não lhe cobrava perfeição por saber perfeitamente que não havia lhe dado, ela desenhava com a liberdade de um deus, recriava a seu modo tudo o que via. Quando, certa vez, com um grito, ela chamou sua mãe que lhe passava às suas costas, para lhe mostrar sua a obra:
“Ninguém desenha um elefante tão bem quanto você” ela disse,
“acho mesmo que eles iriam preferir ser como no seu desenho se o vissem”  completou.

Tal lembrança a marcou com um sentimento. A compaixão.
Sua mãe havia tentado ser de fato uma mãe.
Ela tentou, mas sua borboleta não estava tão bela assim.

Noite silenciosa, noite escura... tanto quanto era silêncio e escuridão o coração do homem que só da boca emitia som, que só com a boca lhe disse que a amava.

Onde está O Homem?
Ainda diz amá-la?
Ainda é silêncio?
Se tornou escuro o bastante para ver a luz?
Sente falta do seu cheiro?
Está no lugar que desejava?
Ele a deixou louca?
Ou apenas livre?
Até quando?
Só o tempo.

De frente ao espelho pode ver a ação do seu algoz,
tentou lavar seu rosto e percebeu que nele não havia mais brilho.
Ela havia construído seu mundo ao redor de vulcões, e eles a queimaram.
O tempo havia lhe surrado a face, enterrado seus olhos em duas covas escuras
e lhe rasgado um sorriso de plástico que os contradizia.
Quando, porém, seu olhar cruzou com o seu próprio no espelho,
ela percebeu que algumas coisas a vida muda, mas que ela era a mesma.

Enquanto esperava que enchesse a banheira, viu pelo basculante, a cidade que dormia apesar do ruído metálico e do calor estático da noite sem nuvens.
Ela havia comprado esse apartamento por causa da vista,
e se perguntava agora o que desejava ver.
Porque tudo o que agora olhava de cima, ela já conhecia
pessoalmente  e com proximidade ofegante.

Paredes e pessoas,
corpos e a ruas,
sombras e suas luzes,
sentimentos e a dor,
corações e só.

Então porque ela preenchia sua esperança com felicidades que pegou emprestado, porque gritava “eu acredito!” se isso não significava nada pra ela.

Fria.
Água fria a rodeava agora...
Seus cabelos muito negros se espalhavam como algas no mar noturno,
Um arrepio no ombro a assusta como um último indício de que ela ainda vivia.
De volta à água da qual nunca nascera, sente que seu pai enfim lhe beija a face,
Rompe então a tênue linha que a separava do fim.
Uma surdez momentânea, a pressão acolhedora, o distanciamento almejado...
e ela.

Só ela. Enfim sentindo, sendo, outra vez criando e sendo criada,
tanto morrendo quanto nascendo.
Ela abre a boca de uma só vez,
como se seu grito não devesse ser ouvido pelo mundo,
e se sente então tomada pela água que invade seu corpo lenta e dolorosamente. Liberdade e desprendimento se misturam a dor limpa e leal que sente.

Ainda há música em seus ouvidos
há um pouco de vinho em sua boca
Um pouco de vida em seu corpo
Algumas lembranças nos seus olhos

E se pergunta então uma ultima vez... Senhor, pode me ouvir agora?

Doce Alvorada

Ele é doce...doce do tipo que sofre com formigas
Tem aquele cheiro que faz com que acelerem meus batimentos
Um aroma de madeira fresca, papel e terra.

Quando ele conta algo, inclina a cabeça para trás
ligeiramente para direita... e fecha os olhos abrindo-os lentamente logo depois.
Quando algo não tem solução, ele levanta o queixo apertando assim a pequena boca
Boca essa que quando ele sorri, age como se de súbito tomasse uma preferência pelo lado direito de seu rosto, moldando assim o sorriso charmoso que contagia o meu.

Sua presença amanheceu em mim,
aquecendo-me e iluminando esse solo até então frio e sem vida.
Sua face tem sido desde então como o horizonte
onde posso vislumbrar uma felicidade outrora impossível,
mas que agora tornasse tão presente quanto o calor do sol e de sua pele.

Pra você, por mim.

Meu anjo, se te escrevo hoje, é por saber que nunca vai ler essas palavras. Mesmo que possa parecer injustificável ou até mesmo inapropriado, ainda sim escrevo. Porque escrevo essas palavras pra você, mas eu as escrevo por mim.

O que faria eu com tais palavras? Injustificável seria deixa-las secar ao sol como as flores da primavera que passou e ninguém viu.Se escrevo é para que não seja tão árduo esse sentimento, para que minhas palavras de amo possam ser ditas nem que seja ao vento, pois em mim elas já não cabem mais.

Mas meu anjo, você nem sabe que te chamo assim, você nem ao menos acredita neles. Como esperar que você entenda esse meu gostar, que não é grande por não ter tamanho.

Te olhando dormir, senti que de nada valia minha individualidade, eu deixarei de ser eu para me tornar a própria felicidade. Sua felicidade.

Serei, meu anjo, o que lhe faltar. Serei o amigo, o pai, a mãe, professor... indefinidamente seu. Para cada necessidade sua, me farei solução, para cada lágrima que cair, serei o motivo para o sorriso. E meu anjo, quando você cair, antes mesmo do chão, você verá minha face, e sentirá que minha mão te espera, e perceberá que além de te levantar ela pode ser sua companhia para caminhar.

Por favor, meu anjo, esqueça o homem do qual você provém, e esqueça o homem que você acredita ser. Não se prenda dessa forma, você nunca saberá, se nunca tentar, perdoar seu passado e simplesmente ser meu.

Eu terei de me perdoar quando por fim, mergulhar nas profundezas geladas que são seus olhos, pois eu preciso trazer você de volta pra si mesmo. Ainda que esse que eu trouxer   não me ame e não reconheça em meu corpo as chagas do sacrifício, eu estarei sorrindo ao ser expulso. Pois se o fiz foi por você. Você que é o motivo justifica a respiração que me mantém. Pois ao invés de ar, meu anjo, eu só respiro você.

Hoje o canto da cama só tem sua ausência, não há estrelas no céu. E quando escuto a música, meu anjo, é seu cheiro que eu sinto. Nesse quarto escuro, a única centelha de vida, é a que queima em meu peito, pois é nele que habitas, seja onde você estiver agora,
meu anjo.

Profundezas Abissais

Não sou.
Sou seu ser de profundezas abissais... não sobreviveria nas águas rasas que são esses seus sentimentos
vivo onde não há! Apenas não há.
Pois haver seria insuficiente... lá se é! Desde o mínimo ser que possa então ser de fato.
Lá ele é.

Não existe  amenidade que viva nesse território de sentimentos descomunais que apesar da grandiosidade correm de forma desordenada em direção a corações fracos e despreparados...
Cada pedaço de sentimento desce como uma rocha negra naquele solo encharcado por água de igual 
escuridão, de forma a causar aquele estrondo mudo que ecoa nos apodrecidos corações que ali habitam.
Muito acima, em águas menos profundas estive impregnado de uma luz ligeiramente colorida, assim como são ligeiramente vivos os seres que lá vivem
Leviandades... Frívolos sentimentos que eu vi! Nem mesmo sua descartabilidade é verdadeira pois eles com suas formas padronizadas atormentam  e se aglutinam em tudo que tocam, contaminam, multiplicam-se!

Como me causa ódio! Não me atreveria chama-lo assim se não fosse um ódio verdadeiro!

Me enojam tais seres que vivem nessas águas onde julgam haver limpidez... o que tal limpidez mostraria se não existem nada mais significante que uma leve  transparência de cores quase imperceptíveis brotando desses... ah.. corações! Atrofiados, inutilizados reduzidos a uma estúpida maquina provedora desse fluido insosso de que se forma os sentimentos que eles  usam para mostrar o quão fúteis e degradados se tornaram.

Onde vivo é de uma intensidade violentamente invasiva, onde não se esconde, não se finge, não se parece, não há nada:

Exclamação, descomunhão, exaltação, destruição, deformação, putrefação, mutilação, convulsão, dilaceração!

O sentimento que sai abre com suas múltiplas patas o peito, rasgando a pele seca e pálida que o abrigava, dilacerando o corpo trêmulo do sofredor que se vai.
Que seja podre a carne que carrego, que seja fétido o meu andar, que seja destrutiva minha presença e que eu exploda em sentimentos sempre que sentir.
 Pois se sinto é porque eu sou... e se sou é para que eu sinta!



Um Longo Caminho à Felicidade

Maldita seja essa lucidez que permite que eu perceba em plenitude a dor que sinto e essa felicidade que assim como a lua, se faz próxima o suficiente para fascinar embora impossivelmente distante de alcançar.

Pudera eu alienar-me de uma felicidade     mesmo que frívola e passageira que me embriagasse desse sentimento irresponsável e descompromissado que é a alegria. Talvez assim não fosse tão profundamente ciente dessa  real impossibilidade.

Onde pudesse olhar o sol sem me importar em estar vivo quando ele se por, que eu vivesse a imediatez dos séculos e a eternidade de um olhar.

A Imagem de um Inimigo sem Face

Um sentimento me arromba com voracidade num rompante de agonia, instalando-se em minhas próprias trevas a fim de consumir por dentro.
Ele me traz a falsa ideia de um sofrimento...
Mas ah! Feliz de mim se sangrasse e me doesse dessa tristeza.

Contrariamente, esse sentimento morno age cruelmente ameno... terrivelmente lento... tal como a água que nunca ferve, a represa que cheia que nunca transborda, a doença que nunca mata.

Enquanto escrevo, escorre em minha face as palavras  frustrantes de minha insaciedade.
Elas me veem como um fio de sangue que desce nas curvas do meu rosto continuamente sem nunca pingar.

Não fosse tão cruel, meu algoz se poria diante de mim uma única vez que seja, para que em sua face eu pudesse ao menos encontrar derivação dessa dor que me aflige.

Mas não!

Tal como um viciado se deleita em frenesi  entre as ruínas de uma construção abandonada, esse sentimento se esconde nas minhas próprias sombras, de forma a me dilacerar impunemente.

Pudera eu ter fim!
Pudera eu esperar o término de tudo... o término de mim.

Diferente disso, encontro-me  fadado à continua regeneração da carne morta, à vil renovação da mesma esperança pútrida que me mantém vivo eternamente.
De forma que o eterno me tenha para sempre como um objeto de mórbida crueldade.






O Homem do Poço

No fundo de uma velha casa nessa cidade mesmo, existe um poço não muito fundo, mas o suficiente escuro para esconder um homem. Um homem que não consegue viver em cima. Ele se esconde  (nas pessoas) das pessoas de tal forma que à tempos não vê o sol. Em seu lugar ele deixou outro simpático homem que se da bem com todos, esse belo rapaz é o único que ainda visita o Homem do poço.

Muitos podem pensar que é muita covardia do Homem do Poço, ou que é maldade do Homem que Fala, ficar em seu lugar assim. Mas acreditem eles  precisam um do outro.

Foi o Homem do Poço quem ensinou ao Homem que Fala como fazer o que ele sabia, pórem nunca faria.  Mesmo o Homem do Poço sabendo muito, ele está lá... escondido. Pois quem sabe viver mesmo é o Homem que Fala. Eles precisam que alguém fale.

O Homem do Poço nem se lembra mais quando foi parar lá. Ninguém sente a falta dele, falta de quando ele brincava ao sol, de quando ele não sabia que nem tudo que se é, deve-se ser.

Foi ela quem o levou pra lá, a Malícia. Ela falou sobre algo horrível que vive no peito de muita gente, um tal Maldade.

A malícia até que ajudou o nosso homem a se proteger. Mas como teria sido sem ela? Ele teria perecido diante da Maldade ou por não ter se escondido ( pois a maldade se esconde) ele seria mais forte que ela?

Não saberemos, mas o certo é que todos esses anos no poço o deixaram tão ruim quanto a Maldade. Escondido ali no escuro ele nem ao menos enxerga os sentimentos que tem. Não sabe se é  real ou se inventou. Porém em um lugar onde se está só, o que você inventa É real... e não te deixa.

É preciso tomar cuidado com os seus sentimentos quando se está só, bons ou ruins , eles atingem apenas a você.

Me pergunto o que o Homem do Poço ainda espera. Espera mudar para ser aceito quando sair ou espera a coragem para se mostrar como realmente é?

Penso como seria quando/se o Homem do Poço sair.

O dia irá amanhecer e o sol, tão temido virá sem pressa, porém sem piedade, mostrar o que durante anos estava protegido pelas sombras. O que mostraria esse sol? O homem se acostumaria a ter cada sentimento a mostra? Seria feliz?

Nesse momento para onde iria o Homem que Fala? Pois apesar de uma criação, um espelho modificado do Homem do Poço, ele agora tem vida e algo para fazer dela.
Ele seguiria o nosso Homem (não mais)  do poço?
Pouco provável, pessoas que gostam de “Alegres”, “Estilosos”,”Engraçados”, “Sinceros”,... não entenderiam a complexidade de ser simplesmente humano.
O Homem que Fala teria que procurar novas pessoas, Amantes das qualidades.
Tais pessoas merecem a presença desse homem lá do poço, com seu turbilhão de sentimentos?
Em contrapartida, elas são importantes o suficiente para que ele se esconda?

A vida não é fácil no poço. A vida não muda seu jeito mesmo que que você se esconda dela.

O Homem do Poço não reclama muito, pois assim como o Homem que Fala é semelhante as pessoas que engana, o Homem do Poço, por não ter coragem de sair... merece aquele poço.