domingo, 7 de abril de 2013

Nos Bailes de Quarta


Como fazia todas as quartas-feiras desde que ela se foi, declaradamente velho e sem ter mais diversões disponíveis ou compatíveis com meus 72 anos, eu visitava aquele baile destinado a pessoas que, como eu, tentavam se distrair para que o tempo de nossa espera pela morte não nos seja demasiadamente árduo.
Pessoas velhas costumam falar muito, principalmente da vida dos outros, talvez pelo fato de suas vidas terem se tornado como uma fotografia antiga e amarelada pelo tempo, dependurada na parede de suas memórias, de onde apenas vislumbram uma felicidade passada cujos ápices há muito se foram. Como acontecera muitas outras vezes, o assunto geral era um casal que sempre aparecia por lá às quartas e que agora se balançava a beira do salão.
Ela que tinha 45 anos quando ele nasceu, hoje trajava um vestido muito simples, quase da cor de sua pele, ornado com um belo broche que combinava discretamente com o colar e os brincos que dependurados em suas orelhas as esticavam ainda mais que o tempo, trazendo em sua cabeça um prendedor com três pérolas e uma pena negra. O homem era alto, forte e se destacava pelos seus 35 anos bem vividos, seus traços fortes e pele escura.
Como de costume ela chegou de braços dados com ele, que com um olhar procurava uma mesa. Quando então conseguiu, deixou sua bolsa e o motorista que os acompanhava e seguiram direto para o salão onde agora pairava sobre as mesas um bolero tão antigo quanto o passado das pessoas ali presentes.
Desde que comecei a frequentar os bailes de quarta eu os via, e a presença deles sempre salpicava com murmúrios as mesas que circundavam a pista de dança. Os comentários, vindos das velhas e desocupadas senhoras com quem eu partilho essas noites, apesar de variados eram sempre os mesmos, de que ela tinha muita sorte, de que ele era um coitado, de que aquilo por certo estava custando muito caro para ela, de que ele era um aproveitador, de que ela era uma velha assanhada, de que ele logo a deixaria, de que ela logo seria deixada.
Passei cerca de um mês impedido de visitar os tais bailes devido a um daqueles resfriados que se aproveitam de nossos peitos gastos e cansados. Cheguei, pedi meu uísque costumeiro e me pus a observar os dançarinos rodopiantes à minha frente, casais repartidos, maridos e esposas que dormiam só, se emprestavam na tentativas de substituírem mutuamente a falta de seus entes que se foram. Não pude deixar de pensar em como eu me conformei com a solidão, como se não tivesse mais motivos para viver esse restante de vida, pois de alguma forma eu não tinha a mesma esperança deles, eu sabia que uma falta como a dela não poderia, nem parcialmente muito menos temporariamente, ser preenchida.
Perdi-me em meio à romanticidade dos boleros que iniciavam a noite, pois eles me traziam lembranças que nunca tive, momentos que eu abdiquei por egoísmo e desinteresse, e que agora me faziam falta, causando um buraco no peito onde deveriam doer minhas saudades e memórias, e que como a grande boca de uma fera devorava todos os sentimentos e esperanças excretando-os em lugares do meu coração onde já não tenho acesso.
 Só quando começaram as valsas que dei pela falta daquele casal, o preferido para comentários das velhas peruas. Ante minha pergunta, minhas colegas relataram que há algumas semanas não os viam, sem perderem a oportunidade de lançar-me um comentário ácido sobre o rapaz ter arrumado outra senhora para banca-lo.
Como que adivinhando minhas especulações e curiosidade, a porta se abriu deixando que por ela passasse o ar de nova madrugada, e aquele casal, que como num cortejo entrava lenta e dificultosamente no salão.  Ela, com os olhos quase serrados como tules brancos, jazia sobre uma cadeira de rodas, seguida pelo mesmo homem, bem mais magro e que agora trazia um semblante cansado e duas covas escuras sob os olhos.
Acabava de começar uma valsa e alguém ao microfone anunciou como sendo a última, tal me pareceu de início muito familiar e com algum esforço me recordei que foi ela que embalou o baile dos 15 anos de minha amada, a noite em que eu a conheci e que brindamos o fantástico encontro com o beijo ao final da mesma. Foi com os olhos chorosos que senti enfim a saudade, a falta, onde cada mínima lembrança me doeu o peito. Tudo que eu não fiz, tudo que eu não fui, tanto que faltei, o quanto a deixei e ah...como eu a amei. Ela que foi a única flor que brotou nesse terreno seco de minha memória, o lírio de minha felicidade, a flor que eu fiz murchar.
A melodia daquela valsa encheu o salão e a todos aqueles nossos ouvidos cansados com um amor bonito, um sentimento de esperança e saudosismo, e foi esse momento que o casal escolheu para entrar na pista de dança.  Ele a ergueu com cautela e carinho até a altura de seu peito, onde repousou sua cabeça cansada. Os cabelos dela, agora tingidos, traziam o mesmo prendedor de pérolas, dando àquela dama um requinte à sua altivez ferida.
Eles carinhosamente abraçados foram para o centro da pista de dança, sob o globo de luz que como num céu invertido, salpicava de estrelas o chão. De lá partiram rodando, desmanchando as nuvens daquela fumaça adocicada, num romance celeste que ninguém ousaria julgar. Amor tão grande que acendeu a velha lanterna que há tempos estava sem combustível, mas que agora queimava em meu peito, trazendo uma certeza que a vida continua, de que eu estava vivo para vivê-la.
Quando a fumaça foi baixando e as pessoas ao poucos esvaziando o salão, pude perceber uma silhueta que jazia no centro da pista. Como numa pietà invertida, o homem segurava nos braços a mulher a quem amou por tão pouco tempo, e que talvez por isso tão intensamente. Ela agora chegara ao seu fim deixando-o tão novo, porém tão cansado e ferido como os velhos, destinando-o a aprender a substituir no coração o amor que tem, pelas lembranças do que se teve.

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