domingo, 7 de abril de 2013

Amie

Como fazia todas as noites, ela escutava seus discos favoritos sozinha no escuro,
mas com uma diferença, hoje ela bebia.
Uma comemoração era o motivo.
“Felicidades, querida...” era o que a música lhe desejava.
Seria uma conveniente saudação de aniversário se ela estivesse interessada em felicidade, porém nessa noite em especial ela só queria morte.

Sentada em sua poltrona cinza, ela balança a taça com o líquido escuro que bebia, olhando fixamente para o retrato na parede, permitiu então que sua memória a levasse de novo àquele tempo . . . ela já esteve ali antes, sentada, bebendo. Estava com sono, e a bebida era branca. Sua mãe a preparara.
Uma mãe, tantos erros... quanta ausência.

Ela se lamentava agora ter tido que nascer de humanos...
Pudera ela ter nascido da Natureza, e dessas forças instintivas e imparciais que a formam...do ventre da água, A filha do Vento...

Dos baús velhos das lembranças que ela abandonou
para que não lhe pesassem no caminho,
só uma lhe causou pesar o esquecimento.
Quando ainda pequena, brincando então de ser assim como a vida, ela criava,
desenhando no verso das folhas de um calendário de anos passados.
Como se não houvesse então crítica que se aplicasse ao seu desenho,
já que a natureza não lhe cobrava perfeição por saber perfeitamente que não havia lhe dado, ela desenhava com a liberdade de um deus, recriava a seu modo tudo o que via. Quando, certa vez, com um grito, ela chamou sua mãe que lhe passava às suas costas, para lhe mostrar sua a obra:
“Ninguém desenha um elefante tão bem quanto você” ela disse,
“acho mesmo que eles iriam preferir ser como no seu desenho se o vissem”  completou.

Tal lembrança a marcou com um sentimento. A compaixão.
Sua mãe havia tentado ser de fato uma mãe.
Ela tentou, mas sua borboleta não estava tão bela assim.

Noite silenciosa, noite escura... tanto quanto era silêncio e escuridão o coração do homem que só da boca emitia som, que só com a boca lhe disse que a amava.

Onde está O Homem?
Ainda diz amá-la?
Ainda é silêncio?
Se tornou escuro o bastante para ver a luz?
Sente falta do seu cheiro?
Está no lugar que desejava?
Ele a deixou louca?
Ou apenas livre?
Até quando?
Só o tempo.

De frente ao espelho pode ver a ação do seu algoz,
tentou lavar seu rosto e percebeu que nele não havia mais brilho.
Ela havia construído seu mundo ao redor de vulcões, e eles a queimaram.
O tempo havia lhe surrado a face, enterrado seus olhos em duas covas escuras
e lhe rasgado um sorriso de plástico que os contradizia.
Quando, porém, seu olhar cruzou com o seu próprio no espelho,
ela percebeu que algumas coisas a vida muda, mas que ela era a mesma.

Enquanto esperava que enchesse a banheira, viu pelo basculante, a cidade que dormia apesar do ruído metálico e do calor estático da noite sem nuvens.
Ela havia comprado esse apartamento por causa da vista,
e se perguntava agora o que desejava ver.
Porque tudo o que agora olhava de cima, ela já conhecia
pessoalmente  e com proximidade ofegante.

Paredes e pessoas,
corpos e a ruas,
sombras e suas luzes,
sentimentos e a dor,
corações e só.

Então porque ela preenchia sua esperança com felicidades que pegou emprestado, porque gritava “eu acredito!” se isso não significava nada pra ela.

Fria.
Água fria a rodeava agora...
Seus cabelos muito negros se espalhavam como algas no mar noturno,
Um arrepio no ombro a assusta como um último indício de que ela ainda vivia.
De volta à água da qual nunca nascera, sente que seu pai enfim lhe beija a face,
Rompe então a tênue linha que a separava do fim.
Uma surdez momentânea, a pressão acolhedora, o distanciamento almejado...
e ela.

Só ela. Enfim sentindo, sendo, outra vez criando e sendo criada,
tanto morrendo quanto nascendo.
Ela abre a boca de uma só vez,
como se seu grito não devesse ser ouvido pelo mundo,
e se sente então tomada pela água que invade seu corpo lenta e dolorosamente. Liberdade e desprendimento se misturam a dor limpa e leal que sente.

Ainda há música em seus ouvidos
há um pouco de vinho em sua boca
Um pouco de vida em seu corpo
Algumas lembranças nos seus olhos

E se pergunta então uma ultima vez... Senhor, pode me ouvir agora?

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