O sol há muito havia se posto e o oceano era agora uma
catedral de silente solidão. Me arrastei até a beira do precipício submerso
onde meus olhos nada viam além de uma densa mancha negra e me joguei.
Meu corpo desceu solenemente e pude sentir o frio e a
pressão que me lembravam o quão fundo eu estava. De poucos metros de onde caíra
sua concha, pude perceber que a rachadura que nela havia, era agora um buraco
de onde parte de seu braço escapava.
Me aproximei lentamente, meu coração batia descompassado.
Enfim podia vê-lo, faltava agora pouco para tê-lo livre. Nesse pensamento
toquei o que restava da concha e exerci sobre sua superfície considerável
força. Um ruído mínimo e toda estrutura desabou fazendo subir areia e algas
mortas que se depositavam no fundo do mar.
Quando baixou a sujeira e a água ficou menos turva, pude ver
seu corpo que repousava solene como uma pérola. Foi fácil sorrir de novo. Meus
dedos novamente seguiram as linhas que davam forma aos símbolos milenares
traçados em sua pele. Toquei sua face limpando o que restava de sujeira e me
assustei quando notei que por onde meus dedos passaram sua pele mudava de cor.
Seus olhos se abriram e me fitaram mórbidos e sem expressão.
Não sei bem a razão, mas esfreguei com força sua face, seu peito... por baixo
da pintura tão bem feita, descobri pasmo que uma pele escamosa e cinza cobria
seu corpo. Me afastei e com calma lentidão, sentei-me encolhido num canto ainda
mais escuro da cratera. Percebi sua aproximação e senti que me olhava. Quando
abri os olhos, em minha frente havia agora uma salamandra cinza, ela não
possuía dentes e seus olhos eram cobertos pela mesma pele fina que dava ao
anfíbio um ar cadavérico.
Entendi que nunca havia saído do fundo do mar, ignorando a
existência de ar, sol ou terra, coisas que a mim remetiam a alegria e saudade...por
certo nunca verá a beleza de uma borboleta e o sol pra ele nunca passará de uma
mancha mais clara na escuridade de sua visão, pois na profundidade em que se
encontrava, as imagens eram comodamente ignoradas por seus olhos que agora não
passavam de esferas negras, cujo brilho dava a falsa ideia de vida.
Aceitar que tal criatura era o mesmo ser que até então considerei
divino, me custou muito, por orgulho ou talvez piedade. A transparência da pele
me permitiu ver que seu minúsculo coração estava ferido e batia com dificuldade.
Me levantei caminhando até onde jazia a parte inferior de sua concha, onde um
ouriço de cor negra se movia dificultosamente sobre a superfície lisa. Entendi
que mesmo com o coração ferido, ele não aprendera a se afastar do que lhe
machuca.
Foi no Templo sagrado
da despedida que o abandonei, entregue aos flashes luminosos de alegrias
passadas ,onde ele permanecerá revivendo o que se passou, aguardando alguém que
está há séculos de distância e esquecimento.
Enquanto olhava taciturno a paisagem, ouvi uma voz; a mesma
de sempre, porém dessa vez a reconheci. Era minha própria voz que afirmava
repetidamente: passou, passou, passou...
Como um feitiço que se quebra, a pressão e o frio aliviaram
imediatamente e a água escura de outrora se mostrava densa névoa. Diante dessa
imagem, aceitei que eu mesmo havia criado tal fantasia.O mar, o recanto, sua
imagem...tudo se desfazia ao meu redor.
Me ajoelhei agarrando com força a terra sentindo o calor do
sol da manhã que surgia no horizonte azulado. O vento soprou forte dissipando
toda a névoa e a escuridão que ela trazia. Ergui a mão acima da cabeça e então
a abri para que o vento soprasse toda a terra que nela havia. Confiei novamente
no vento, assim como fazia quando criança e segui a mesma direção da poeira, na
certeza de que ele me soprava o caminho de volta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário