domingo, 18 de agosto de 2013

Cinza

O sol há muito havia se posto e o oceano era agora uma catedral de silente solidão. Me arrastei até a beira do precipício submerso onde meus olhos nada viam além de uma densa mancha negra e me joguei.
Meu corpo desceu solenemente e pude sentir o frio e a pressão que me lembravam o quão fundo eu estava. De poucos metros de onde caíra sua concha, pude perceber que a rachadura que nela havia, era agora um buraco de onde parte de seu braço escapava.
Me aproximei lentamente, meu coração batia descompassado. Enfim podia vê-lo, faltava agora pouco para tê-lo livre. Nesse pensamento toquei o que restava da concha e exerci sobre sua superfície considerável força. Um ruído mínimo e toda estrutura desabou fazendo subir areia e algas mortas que se depositavam no fundo do mar.
Quando baixou a sujeira e a água ficou menos turva, pude ver seu corpo que repousava solene como uma pérola. Foi fácil sorrir de novo. Meus dedos novamente seguiram as linhas que davam forma aos símbolos milenares traçados em sua pele. Toquei sua face limpando o que restava de sujeira e me assustei quando notei que por onde meus dedos passaram sua pele mudava de cor.
Seus olhos se abriram e me fitaram mórbidos e sem expressão. Não sei bem a razão, mas esfreguei com força sua face, seu peito... por baixo da pintura tão bem feita, descobri pasmo que uma pele escamosa e cinza cobria seu corpo. Me afastei e com calma lentidão, sentei-me encolhido num canto ainda mais escuro da cratera. Percebi sua aproximação e senti que me olhava. Quando abri os olhos, em minha frente havia agora uma salamandra cinza, ela não possuía dentes e seus olhos eram cobertos pela mesma pele fina que dava ao anfíbio um ar cadavérico.
Entendi que nunca havia saído do fundo do mar, ignorando a existência de ar, sol ou terra, coisas que a mim remetiam a alegria e saudade...por certo nunca verá a beleza de uma borboleta e o sol pra ele nunca passará de uma mancha mais clara na escuridade de sua visão, pois na profundidade em que se encontrava, as imagens eram comodamente ignoradas por seus olhos que agora não passavam de esferas negras, cujo brilho dava a falsa ideia de vida.
Aceitar que tal criatura era o mesmo ser que até então considerei divino, me custou muito, por orgulho ou talvez piedade. A transparência da pele me permitiu ver que seu minúsculo coração estava ferido e batia com dificuldade. Me levantei caminhando até onde jazia a parte inferior de sua concha, onde um ouriço de cor negra se movia dificultosamente sobre a superfície lisa. Entendi que mesmo com o coração ferido, ele não aprendera a se afastar do que lhe machuca.
 Foi no Templo sagrado da despedida que o abandonei, entregue aos flashes luminosos de alegrias passadas ,onde ele permanecerá revivendo o que se passou, aguardando alguém que está há séculos de distância e esquecimento.

Enquanto olhava taciturno a paisagem, ouvi uma voz; a mesma de sempre, porém dessa vez a reconheci. Era minha própria voz que afirmava repetidamente: passou, passou, passou...
Como um feitiço que se quebra, a pressão e o frio aliviaram imediatamente e a água escura de outrora se mostrava densa névoa. Diante dessa imagem, aceitei que eu mesmo havia criado tal fantasia.O mar, o recanto, sua imagem...tudo se desfazia ao meu redor.
Me ajoelhei agarrando com força a terra sentindo o calor do sol da manhã que surgia no horizonte azulado. O vento soprou forte dissipando toda a névoa e a escuridão que ela trazia. Ergui a mão acima da cabeça e então a abri para que o vento soprasse toda a terra que nela havia. Confiei novamente no vento, assim como fazia quando criança e segui a mesma direção da poeira, na certeza de que ele me soprava o caminho de volta.

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